junho 27, 2008



Acordo de noite subtamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura
com paredes vagamentes brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens
que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite
com os cantos da boca,
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...

Alberto Caeiro

junho 25, 2008



Todas as vidas
Cora Coralina

Vive dentro de mim
Uma cabocla velha
De mau-olhado,
Acocorada ao pé do borralho,
Olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
A lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
D'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
Pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
A mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
Toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de côco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
A mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
Desabusada, sem preconceitos,
De casca-grossa,
De chinelinha,
E filharada.

Vive dentro de mim
A mulher roceira.
—Enxerto da terra,
Meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
A mulher da vida.
Minha irmãzinha...
Tão desprezada,
Tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida
— A vida mera das obscuras.

junho 20, 2008



A noite foi feita para se dormir
porque senão no escuro
se compreende
o que se quis dizer
quando falaram em inferno,
e tudo aquilo
no que uma mulher
não acredita de dia,
de noite ela entenderá.

Trecho de "A maçã no escuro"
Clarice Lispector

junho 06, 2008



Noções
Cecília Meireles

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que
a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se
encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e
precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e
inúmera...

junho 03, 2008



Chega disso
Alzira Espíndola

Chega dessa chaga,
chega dessa forma, dessa farda
De qualquer forma chega,
desse trauma de ser Cristo
Vira o disco,
chega deixa disso, chega.
Desse luto nega,
chega junto muda de assunto
Chega desse "sinto muito"
De tanta sala fechada
Tanta fala calada,
tanta água parada
Nega chega de chá, enxágua,
chega de só, sofá.
Deixa o sol chegar,
chega que chega já
Chega de será? Que será?
Chega com tudo,
vem com tudo
Chega se aconchega,
desse nada!
Chega!
Desse pobre horário nobre,
desse porre
Nega chega!
Desse morre, não morre!
Chega de socorro,
me socorre!
Desse morre não morre!
Chega de socorro,
se socorre!
De tanta sala fechada
Tanta água parada, nega!