dezembro 15, 2009



Já não tenho lágrimas
Cecília Meireles

Já não tenho lágrimas:
estão caídas
longe, em vagas margens,
qual mornas ovelhas
recém-nascidas.

Longe estão caídas,
entre esses montes
de saudades vivas,
de figuras frias,
ai, de que horizontes!

Suspiros montes!
Porém, agora,
talvez não me encontrem.
Pois a alma se esconde,
porque já nem chora.



Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de.
Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar.
Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes
é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.

(Clarice Lispector)

setembro 29, 2009



No ponto onde o silêncio
Sophia de Mello Breyner

No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.

setembro 22, 2009



Antes de te conhecer
José Luis Peixoto

Era o teu rosto.
Era a tua pele.
Antes de te conhecer,
existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens
que olhava ao fim da tarde.
Muito longe de mim,
dentro de mim,
eras tu a claridade.


A Primavera
Cecília Meireles

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome,
nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.
A inclinação do sol vai marcando outras sombras;
e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam
pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera
que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra,
nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão
as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e
já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur.
Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais
de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas
apressam-se pelos ares, — e certamente conversam:
mas tão baixinho que não se entende.





Oh! Primaveras distantes, depois do branco e
deserto inverno, quando as amendoeiras
inauguram suas flores, alegremente,
e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas,
as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas,
entre os humanos, sabem que uma Deusa chega,
coroada de flores, com vestidos bordados de flores,
com os braços carregados de flores,
e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.


Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida
não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita
para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim.
Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem,
no momento que quiserem, independentes deste ritmo,
desta ordem, deste movimento do céu.
E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos,
— e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais
com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

setembro 21, 2009



Quadras
Florbela Espanca

Teus lábios cor das papoilas,
Vermelhos como o carmim,
Não são lábios nem papoilas
São pedaços de cetim.

setembro 09, 2009



Operação alma
Mario Quintana

Há os que fazem materializações...
Grande coisa! Eu faço desmaterializações.
Subjetivações de objetos.
Inclusive sorrisos,
Como aquele que tu me deste um dia com o mais
puro azul de teus olhos
E nunca mais nos vimos. ( Na verdade, a gente nunca
mais se vê...) No entanto,
Há muito que ele faz parte de certos estados do céu,
De certos instantes de serena, inexplicável alegria,
Assim como um vôo sozinho põe um gesto de adeus
na paisagem,
Como uma curva de caminho,
Anônima,
Torna-se às vezes a maior recordação de toda uma
volta ao mundo!

agosto 20, 2009



O Livreiro de Cabul
(fragmento)
Asne Seierstad

...Sob a burca eu estava livre para olhar à vontade sem que
ningúem me olhasse. Eu podia observar as outras pessoas
da família fora de casa sem atrair a atenção para mim. O
anonimato tornou-se uma libertação, era o único lugar onde
podia me refugiar, porque em Cabul, praticamente não há
lugar tranquilo para se estar sozinho.
...Também vestia a burca para saber como é ser uma
mulher afegã. Como é espremer-se num dos três bancos
traseiros de um ônibus quando há muitos bancos livres
na frente. Como é dobrar-se no porta-malas de um táxi
porque há um homem no banco de trás.
...Com o tempo comecei a odiá-la. A burca aperta e dá dor
de cabeça, enxerga-se mal através da rede bordada. É
abafada, deixando entrar pouco ar, e logo faz suar. É
preciso tomar cuidado o tempo todo onde pisar, porque não
podemos ver nossos pés, e como junta um monte de lixo,
fica suja e atrapalha. Era um alívio tirá-la ao chegar em
casa.